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Sonhos são iscas para vítimas de tráfico humano

03/10/2017 13:18 | Seminário
Foto da Notícia: Sonhos são iscas para vítimas de tráfico humano

img    “Sonhos podem cegar”, alertou o secretário-executivo da Ong Projeto Resgate, Marco Aurélio de Sousa, durante o encerramento do I Seminário de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. O crime que vitimiza mais de centenas de milhares de pessoas em todo o mundo não escolhe grupos ou situações. De acordo com ele, para se tornar uma vítima de tráfico de pessoas, basta ter um sonho.

    “Todos nós temos sonhos. Quando recebemos uma vítima, fazemos uma pergunta clássica: qual é o seu sonho? Porque precisamos saber o que levou a pessoa a sair de seu país e aceitar uma proposta. O que move o tráfico de pessoas é o sonho porque todos nós temos sonhos e você não pode tolher o sonho das pessoas”, conta.

    São crianças, adultos e idosos; homens e mulheres; traficados para adoção ilegal, casamentos forçados, venda de órgãos, exploração sexual e trabalho escravo, aliciados com a esperança de ganhar mais para ajudar sua família, construir a casa própria, jogar futebol, ser modelo, casar. O tráfico de pessoas movimenta em torno de R$ 32 bilhões por ano.

    “O grande problema do tráfico de pessoas é que ele é invisível, subterrâneo, e quantificar é difícil até porque muitas das vítimas não se veem como vítimas”, esclareceu Marco Aurélio de Sousa.

    Como exemplo, o secretário cita que uma pessoa levando arma ou droga debaixo do braço no aeroporto é imediatamente barrada, mas ao passar de braços dados com outra pessoa, o mesmo não acontece. Nem a própria pessoa tem consciência que está sendo traficada ao deixar o país.

    O mesmo acontece na região de fronteira. Presidente da Comissão de Infância e Juventude (CIJ) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso (OAB-MT), Tatiane de Barros lembra que ao cruzar a fronteira entre Brasil e Bolívia, as pessoas podem ser interceptadas ao transportar pneus, alimentos, roupas, mas raramente são questionadas quando passam levando uma criança no colo ou pelas mãos.

    Segundo as estatísticas do Itamarati, cerca de 3 milhões de brasileiros vivem, atualmente, fora do país. No entanto, o representante da Ong estima que esse número não seja nem 10% da realidade. Ele ainda ressalta que todo traficado é um migrante, mas nem todo migrante é um traficado, por isso a dificuldade em se quantificar o crime.

    De acordo com o levantamento feito pelo Projeto Resgate, estima-se que 99% das vítimas não são resgatadas e somente entre 1% e 2% dos traficantes são condenados. Os dados da Câmara Criminal do Ministério Público Federal apontam que tramitam no país 78 ações penais, 29 processos, 97 inquéritos policiais e 21 procedimentos investigatórios sobre o tema.

    Além de entraves na legislação que trata do tráfico de pessoas, as vítimas também se sentem desencorajadas e desestimuladas em realizar as denúncias. Em um dos depoimentos apresentados durante o I Seminário de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, uma mulher vítima de tráfico para exploração sexual conta que, após vencer todos os obstáculos para, finalmente fazer a denúncia, nada foi feito.

    Ana, como se apresentou, relata que perdeu o pai – policial civil - aos 14 anos de idade e, por causa de um erro administrativo, não conseguiu receber a pensão. Foi então que entrou para a prostituição e, já no mercado, foi aliciada para trabalhar no exterior, onde foi submetida à exploração sexual e trabalho escravo, sendo obrigada a pagar diversas multas, inclusive se menstruasse, e sofreu tortura psicológica e física, chegando a ter os bicos dos seios arrancados com alicate.
A vida de Domingos Ferreira dos Santos, que foi resgatado em 2007, aos 86 anos, depois de passar 50 anos como escravo em uma fazenda no interior de Goiás, está relatada no site www.historiaincomum.com.br e retrata os entraves judiciais vivenciados pelas vítimas de tráfico humano debatidos durante o seminário.

    Para prevenir situações como essas, a luta é complexa. Isso porque os aliciadores se aproveitam dos sonhos das pessoas para convencê-las a arriscar a vida em outro país. Os sonhos são os mais variados: vão desde a vontade de se tornar um jogador de futebol, conhecer o “príncipe encantado” e até mesmo realizações materiais.

    Foi pela vontade de juntar dinheiro para comprar uma máquina de tear que uma senhora de 62 anos se tonou escrava na casa de um casal na Europa. Após conhecê-los no Brasil, recebeu a proposta para trabalhar em sua residência, onde poderia ganhar o suficiente para, em dois anos, juntar dinheiro para comprar sua máquina. Ao chegar ao local, se deparou com outra realidade. Era obrigada a pagar pelos banhos que tomava, pela comida, para dormir e tudo o mais. Sem acesso à documentação, sequer teve direito a atendimento de saúde quando se viu vítima de um câncer e, já sem condições de trabalhar, foi abandonada pelo mesmo casal na porta do consulado brasileiro.

    O aliciamento, segundo expôs Marco Aurélio de Sousa, muitas vezes parte de pessoas distintas e solícitas, que se apresentam às famílias da vítima falando sobre as propostas de emprego e vantagens de trabalhar fora do país. Existem casos, inclusive, que os aliciadores eram membros da própria família. “A pessoa sempre vem com uma proposta atrativa”, disse.

    Eliane morava em Recife quando se apaixonou por um turista. Namoraram por um período e se casaram quando ela decidiu ir embora com ele. Não precisaram se afastar muito do aeroporto para que, ainda no carro, o que ela acreditava ser um príncipe encantado se transformar em um “monstro”.

    Conforme o depoimento, o marido a transformou em escrava sexual. As relações constantes chegaram a lhe causar traumatismo vaginal e Eliane era alimentada apenas com água e alface até que conseguiu fugir.

    Histórias como a de Ana, Domingos, Eliane não são exceções. São apenas alguns dos poucos exemplos e poucos sobreviventes que conseguiram externar o que viveram.

    A tarefa de resgatar pessoas não é simples. “Não podemos dizer para as pessoas que elas não podem sonhar. O que nós fazemos, é alertar as pessoas”, comentou.

    Assim, ele destaca que aqueles que vão sair do país precisam estar com a documentação em ordem, em situação legal, e se registrar junto ao consulado ou embaixada assim que chegar ao destino. “Façam isso de forma legal. Ninguém quer te proibir de sair do Brasil, mas ao sair, tenha todos os cuidados necessários para, amanhã ou depois, não acabar sendo vítima de tráfico”, disse.

    Uma das principais medidas para enfrentar o tráfico de pessoas no Brasil é levar a informação à população. Este foi justamente o objetivo do evento realizado pela CIJ, em parceria com Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Cetrap), Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de Mato Grosso (Cedca-MT) e Associação Mato-grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (Ampara).

    Durante o evento que aconteceu nos dias 28 e 29 de setembro no auditório da OAB-MT foram abordados diversos temas sobre o assunto, desde a necessidade de aprimoramento nos instrumentos legais, como o papel da mídia e tecnologia para prevenção e combate ao tráfico de pessoas.

    Uma das propostas apresentada pela juíza Jaqueline Cherulli foi a realização de uma “Hackaton” (espécie de maratona de hackers) contra a exploração sexual e tráfico de pessoas, com profissionais da área de tecnologia trabalhando no surgimento de novas soluções, tanto para a sociedade, quanto para as empresas.

    “Precisamos debater cada vez mais sobre esse assunto e mostrar para a sociedade que o tráfico de pessoas é uma realidade e que acontece aqui também”, finalizou Tatiane de Barros.

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