A questão indígena está na ordem do dia no Brasil. E não é de hoje. Na verdade se assemelha à onda do mar: em geral vai e volta permanentemente, silenciosa, mas quando dá na telha não hesita em avançar seu domínio, engolindo o que quer que se encontre pela frente. Depois, vai recuando como se nada tivesse acontecido, revelando aos poucos seu rastro de destruição.
Mas é certo que essa agenda tem ganhado força especialmente nos últimos anos, sobretudo devido ao aumento significativo de demarcações de terras indígenas, que, indica o Censo de 2010 realizado pelo IBGE, ocupam 12,5% do território nacional, onde vivem cerca de 517 mil índios. Por via de consequência, ganham cada vez maior notoriedade também os casos de tensão envolvendo silvícolas e produtores rurais.
De modo que a oportunidade é ímpar para se refletir sobre o assunto. No entanto, considerada a sua amplitude, bem como a limitação deste espaço, por ora trataremos de um tema específico, ao qual se deve voltar a atenção prementemente: a necessidade de justa indenização aos produtores rurais cujas regulares propriedades são abrangidas por terras indígenas regularmente demarcadas.
Desde já se atente para as palavras “regulares e “regularmente”, que traduzem as premissas do raciocínio pretendido.
De um lado, aqui está se referindo a propriedades rurais registradas, isto é, legalmente constituídas e assim reconhecidas pelo Estado, seja por meio de Cartório de Registro de Imóveis, do INCRA ou dos Institutos de Terras das entidades federativas. A alusão é aos proprietários que, então legitimados, podem empreender, gerando empregos e lucro, e que, assim, suportam os ônus inerentes às suas atividades, como o cumprimento da legislação ambiental, o recolhimento de imposto de renda sobre a produção, do ITR, ou eventualmente do ITBI pela compra/alienação do imóvel, etc.
De outro lado, aqui está a se tratar de terras indígenas que foram reconhecidas ao cabo de rigoroso e transparente processo administrativo demarcatório, antes do qual, já que ainda é desconhecida a sua conclusão, é inadmissível a invasão – e a palavra é essa mesmo – da área objeto da discussão, e durante o qual tenham sido conferidas oportunidades de ampla defesa e contraditório aos interessados, tudo em conformidade com a Constituição Federal e com a legislação atinente à matéria.
Trocando em miúdos: ao sujeito ocupante de área que não lhe pertence – principalmente se esta for pública – não assiste o direito de pleitear qualquer tipo de indenização pela superposição superveniente de terra indígena em tal localidade. Por outro lado, é manifestamente irregular, quando não for nulo, o processo administrativo demarcatório que não levar em conta os requisitos imprescindíveis para tanto.
Pois bem. Imaginemos então rara situação - pudera! - em que determinado imóvel rural, regular, deixe de existir, sendo sua área incorporada a terra indígena recentemente demarcada, também regularmente. Não há dúvida de que os índios, legitimamente, poderão tomar posse dela, com todas as garantias de proteção que lhes são conferidas. E como ficará a situação do ex-proprietário rural? Deve ser realocado? Deve ser ressarcido?
A Constituição de 1988 é clara: seu art. 231, § 6º, estabelece que a esse proprietário é apenas devida indenização com relação às benfeitorias realizadas no imóvel. Ou seja, o ressarcimento ocorre somente quanto ao que foi gasto em melhoramentos dentro da propriedade (por exemplo, as despesas para construir a sede, a mangueira). É isso mesmo! O valor de mercado do imóvel não é critério para se aferir o valor da indenização, o que, aliás, seria o mínimo a se fazer, sem falar que em alguns casos deveria ser exigida ainda a reparação dos danos morais causados ao produtor rural (por exemplo, devido à sua ligação, às vezes estabelecida em uma vida inteira, com a terra).
Não bastasse a indecência já patente, convém tentar – tentar! – entender a “lógica” empregada pelo Constituinte, que está presente na própria redação do citado dispositivo constitucional. Uma vez realizada a regular demarcação da terra indígena, considera-se nulo e extinto todo ato que formalize o domínio/posse/ocupação sobre área por ela abrangida. Trata-se de uma espécie de ficção jurídica: a demarcação é um ato que apenas DECLARA a existência, na localidade, de terra tradicionalmente ocupada por índios. É como se estes estivessem na posse da terra desde sempre, não havendo portanto que se indenizar ninguém por isso (apenas se indenizam as benfeitorias).
Mas seria justo, no caso, virar as costas para a realidade, fingindo que não havia ninguém ali, cuja existência o próprio Estado reconhecia (e dela se beneficiava) até pouco tempo antes? Se sim, está-se diante da institucionalização do cinismo, da esquizofrenia estatal. Em verdade, a dupla personalidade do poder público seria um eufemismo para arbitrariedade, consubstanciada no confisco, e má-fé. Tem que tratar, e logo!
À primeira vista, uma saída seria então acionar o Judiciário para ajustar as coisas. Mas é só dar mais uma lida no § 6º do art. 231 da Constituição Federal e lá vem outra esculachada. No caso exposto, não há sequer direito de ação contra a União! Perde-se o patrimônio – mais uma vez, reconhecido pelo Estado – e nega-se o direito de defesa... É o pai que bate na criança e ainda a manda engolir o choro.
O que resta é a via legislativa. Sabe-se que é demorada (a propósito, a referida norma constitucional prevê sua regulamentação, que até hoje não ocorreu. E lá se vão 24 anos...). Porém, pode ser vislumbrada como a solução mais segura. Em um juízo primário, talvez o ideal nem fosse mais regulamentar o dispositivo mencionado, mas mudá-lo. E o embasamento teórico necessário para obrigar o Estado a indenizar justamente o proprietário rural nessas situações já existe: o instituto jurídico da desapropriação.
A desapropriação é amplamente conhecida como uma forma originária de aquisição da propriedade pelo Estado. Quer dizer, assim como a demarcação de terra indígena, trata-se de processo administrativo de natureza declaratória, e não constitutiva de nova situação. A grande diferença é que, desde 1941 (em plena ditadura Varguista do Estado Novo!), o Decreto-Lei nº 3.365/1941 exige, para a desapropriação, a JUSTA (valor real do bem) e PRÉVIA indenização ao expropriado, o que também está estabelecido na Constituição da República (art. 5º, XXIV). Por que não adotar a mesma postura quanto à demarcação de terra indígena (o índio não é proprietário dela, e sim a União. Ele apenas tem sua posse)?
Os eventos naturais, como as ondas, são inexoráveis. Sobre eles não se tem controle algum. Eventos humanos, por sua vez, são decorrência do elemento volitivo, presente em todos. Alô, senadores e deputados federais! É urgente essa reivindicação. A ressaca do mar está acontecendo diariamente!
*Thiago Stuchi Reis de Oliveira é alta-florestense e advogado. Bacharel em Direito e mestrando em Direito Administrativo pela Universidade de São Paulo (USP). Email: thiago.stuchi.oliveira@usp.br