O Brasil já viveu momentos na sua história em que a figura emblemática do Habeas Corpus sofreu algum tipo de restrição. Na Revolução de 1930, o seu diploma legitimador, o Decreto 19.398 dispôs: “É mantido o Habeas Corpus em favor dos réus ou acusados em processos de crimes comuns, salvo os funcionais e os de competência dos tribunais especiais”. Em 1968, o famigerado AI-5 estabeleceu: “Fica suspensa a garantia do Habeas Corpus nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”.
Nos dois casos referidos, o Habeas Corpus, instrumento jurídico que materializa o valor mais caro à democracia e à justiça, teve como principal adversário o autoritarismo. E foi exatamente por isso que sofreu limitações.
De tão emblemática, a medida judicial era referida por alguns professores de Direito como sendo o único instrumento jurídico sobre o qual não se poderia impor restrição ou exigir forma especial. Diziam: “o Habeas Corpus é medida tão importante e essencial à vida das pessoas — porque trata da liberdade delas —, que pode ser redigido até mesmo em uma folha de guardanapo ou de papel higiênico...”
O direito de postular em juízo sem exigência de rigor formal tem plena justificativa no fato de que o bem juridicamente tutelado é a liberdade. Qualquer do povo pode interpor a medida em seu próprio favor ou de terceiros.
Para espanto, surpresa e indignação, o chamado remédio heroico sofreu recentemente restrições para a sua interposição, justamente na mais alta corte judiciária do país.
O STF passou a admitir o Habeas Corpus apenas pela via eletrônica, não permitindo a sua impetração, quando subscrito por advogado, nem em folha de papel, nem em guardanapo ou em outro meio ainda menos qualificado, como ilustravam os nossos antigos professores.
A regra, inserta na Resolução 427, subscrita pelo presidente Cezar Peluso, criava requisitos distintos para o habeas impetrado pela própria parte e aquele impetrado por advogado.
Assim dispôs a Resolução 427/STF, no seu artigo 20: "Os pedidos de Habeas Corpus impetrados em causa própria ou por quem não seja advogado, defensor público ou procurador poderão ser encaminhados ao STF em meio físico, mas deverão ser digitalizados antes da autuação, para que tramitem de forma eletrônica".
A justificativa para a norma restritiva era a de que, com a implantação do processo eletrônico, não mais se poderia admitir a forma escrita do instrumento, quando subscrito por advogado.
Tal posicionamento causou indignação nos meios jurídicos, o que fez com que o Conselho Federal da OAB, por oportuna provocação do conselheiro Delio Lins e Silva, atuasse incansavelmente para derrubar a norma restritiva.
Após muita insistência, o STF revogou a malfadada norma em decisão do erudito e justo presidente Ayres Brito, voltando-se a admitir a impetração do Habeas Corpus pela forma física, independentemente da atuação ou não de advogado.
Com a mudança, o artigo 20 da referida resolução passou a ter o seguinte teor: "Os pedidos de Habeas Corpus poderão ser encaminhados ao STF em meio físico, caso em que serão digitalizados antes da autuação, para que tramitem de forma eletrônica”.
Desse fato, bem como dos episódios históricos relembrados no início deste texto, colhem-se algumas lições: i) o Habeas Corpus não pode sofrer nenhum tipo de restrição ao seu ajuizamento, pois isso seria contrário à sua própria natureza; ii) a advocacia deve sempre reagir contra todas as tentativas de limitar a atuação do advogado e os direitos do cidadão; iii) as inovações tecnológicas devem ser acolhidas e aplicadas sempre em benefício do destinatário final do Poder Judiciário, ou seja, o cidadão, sendo utilizadas para ampliar o acesso à Justiça e jamais para restringi-lo.
Alberto de Paula Machado é vice-presidente do Conselho Federal da OAB e ex-presidente da OAB-PR.